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quinta-feira, 6 de junho de 2013

MÃES ÓRFÃS: COMO VIVER COM A PERDA DOS FILHOS


Mães órfãs

Como viver com a perda dos filhos Antonio Carlos Prado


“Eu sempre quis ter outro filho, mas não é um plano para daqui a nove meses”
Ana Carolina, mãe de Isabella

Ser mãe é padecer no paraíso, quanta alegria e celebração à mulher que pode dizer isso – ela é mãe de filho vivo. Mãe de filho morto é mulher que desce ao inferno da dor, do desespero e da depressão. Sua vida, de céu não tem nada, há apenas um quedar-se insone, ansioso e impotente diante de um destino que não pode mudar. Se mães pudessem pressentir a morte inesperada de filhos, em crimes e acidentes, ou salvá-los de morte anunciada por enfermidade que vai se estendendo, simbolicamente tentariam aquilo que é fisiologicamente impossível: pelo mesmo e agora já inexistente cordão umbilical, através do qual os colocaram no mundo, os trariam de volta ao aconchego do útero. Sim, é nele, útero, que a constante dor emocional da morte, quase sempre psicossomatizada, lateja fisicamente. Psicólogos afirmam: “Muitas mulheres, ao perderem suas crianças, sentem pontadas no útero” – útero que já foi preenchido pelo feto, feto que virou filho, filho que virou sepultura. “A dor não passa jamais”, diz Luciana Mazorra, psicóloga clínica e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. “Emocional e fisicamente, é como se ela fosse mudando de lugar e machucando a mãe em espaços diversos.” Assim fala a teórica. Assim confirma a mãe enlutada Ana Cristina de Freitas Rocha, que perdeu em São Paulo a sua “querida Tatiana”, vítima de uma broncopneumonia aguda que fez seu abdômen doer numa quinta-feira e seus olhos cerrarem para sempre já no sábado seguinte: “O falecimento de filho é dor que dói na alma e no corpo.” Ana Cristina explica que “não há superação”, mas tão somente adequação de seu dia a dia ao sofrimento.


Ela trabalha em uma empresa de informática, gerenciando a área comercial, cuida da casa sozinha e atua voluntariamente na Associação Brasileira de Apoio ao Luto. É a essa função que dedica a maior parte de sua energia e tempo, coordenando um grupo de autoajuda e visitando mães enlutadas. Igualmente em outro ponto concordam especialistas em luto materno e mulheres que mirram em seu cotidiano na ausência do ente mais querido: “Às vezes, passase a vida inteira acreditando que o filho não morreu.” Há uma razão para isso, pendulando entre a filosofia e a biologia, essas duas áreas do conhecimento que são, também elas, mães – preciosas mães do entendimento da condição humana: existem na vida dois fenômenos irreversíveis, ou seja, a maternidade e a morte. A mulher é uma mulher e quando dá à luz passa a ser uma mulher-mãe. Se seu filho morre, ainda assim ela continua sendo mãe. Novamente aqui, reforça-se a tese com uma fala dolorida: “Não existe ex-mãe”, diz Maria José Amaral, que chora a falta de sua filhinha, Carolina, morta num acidente de carro na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, às vésperas de um Natal. Hoje ela mora em Brasília, tem um companheiro e escreve livros de contos baseados em experiências como a que ela amargou. Tentou ter outro filho, mas teve de abortá-lo porque o feto apresentava hidrocefalia e agora se resignou: não vai ser mãe novamente.


A DIFICULDADE DE OLHAR NO ESPELHO

Recentemente, duas mães que perderam seus filhos, crianças inocentes nas mãos de assassinos, tornaram-se involuntariamente símbolos da dor que devasta física e psiquicamente outras tantas mulheres, todas órfãs às avessas, digamos assim, de seus pequenos que partiram. Uma dessas mulheres é Ana Carolina Oliveira, mãe de Isabella, trágica história que a mídia contou exaustivamente. A outra é Rosa Cristina Fernandes Vieites, mãe do garotinho João Hélio, que, preso ao cinto de segurança, mas com o corpinho fora do carro, foi arrastado na rua ao longo de sete quilômetros pelos assaltantes que fugiam com o automóvel de sua mãe. Rosa não dá mais entrevista porque um dos assassinos já se encontra em liberdade no Rio de Janeiro – e só três anos se passaram. Quanto a Ana Carolina, ela declarou em entrevistas que pensa em ter outro filho, projeto que não inclui os próximos nove meses. Teve de mudar de endereço em São Paulo (na garagem de sua ex-residência está instalada uma malharia que pertence a seus pais, segundo uma ex-vizinha), acorda cedo para trabalhar e brinca bastante com os sobrinhos. Ainda no campo da violência, é significativo na dor o sentimento da advogada carioca Zoraide Vidal. A sua filha, Ludmila, que era policial, estava grávida quando foi assaltada, torturada e morta.

Hoje, uma Zoraide essencialmente triste continua advogando e auxilia a polícia em trabalhos comunitários no Morro do Borel. Para todas essas mães a vida muda naquilo que é mais perceptível, ou seja, na rotina, na saúde, no ânimo e nos projetos. Mas muda também, e em doses alucinantes de padecimento, naquilo que é inconsútil, mas se torna marcado para sempre: a alma. “É como se a minha Ludmila estivesse agora eternamente na chuva, desamparada e desprotegida”, diz Zoraide. “E eu preciso protegê-la, acolhê-la. A sua última frase para mim, em vida, foi a seguinte: se eu morrer hoje, só volto para o mundo para ser filha da Zoraide de novo.” Ela prossegue: “Onde está a minha Ludmila para eu abraçar, cuidar, beijar? É como amputar um braço, não se recupera mais. É uma dor que é um buraco que nada preenche.” Falou-se em alma da mulher-mãe, falou-se no desejo impotente de amparar o que já é inerte e assim faz-se necessário voltar-se aqui à teoria do luto. O que é essa alma? Como se dá o processamento da irreversível perda? O projeto de maternidade, bem como a maternidade consumada, é para a mulher uma espécie de “prolongamento de seu ego”, assim ensinou humanidade o criador da psicanálise, Sigmund Freud, e dois de seus mais geniais seguidores – embora tenham rompido com o mestre no andar da carruagem do conhecimento humano – Melanie Klein e Jacques Lacan. Pode-se dizer, mesmo, que “é um ato narcisista da mulher e na criança ela vai projetar a si própria, o que não quer dizer que não a ame profundamente e para sempre”. Assim, quando o filho morre, três dores se sobrepõem. Em primeiro lugar, o “espelho-lago da mitologia de Narciso”, presente em todos nós, se parte e muitas mães órfãs mal conseguem olhar-se de fato num espelho de verdade. “Eu não conseguia no início olhar no espelho, o meu olhar sangrava a minha alma”, diz Ana Cristina. “Fiquei oca.” Em segundo lugar, a morte do filho interrompe toda a perspectiva de futuro que a mãe nele depositara, inclusive o futuro de ver seus genes se fortificarem e se perpetuarem – essa é parte emocional e novamente não tangível, mas contam também os projetos visíveis de vê-lo estudar, viajar, fazer dele uma pessoa e tê-lo como uma grande e constante companhia. Com ele vivo, o mundo é uma escada rolante subindo; se ele morre, nem se pode dizer que essa escada rolante pare. Na verdade, ela desce despencando.

A CULPA POR ESTAR VIVA

“Ocorre uma inacreditável descontinuidade. Eu perdi meu presente e, sem presente, com a morte da minha filha Tatiana naufragou meu futuro”, diz Ana Cristina. Finalmente, a morte de um filho interrompe o inexorável, mas natural caminhar do tempo: estamos culturalmente preparados para assistir, primeiro, à morte de nossos bisavós, avós e pais – ou seja, daqueles que primeiro chegaram ao mundo. O falecimento do descendente, portanto, interrompe essa ordem estabelecida de vida e morte e a mulher-mãe enlouquece ao triste estilo dos incrédulos que não se cansam de perguntar “por quê?, por quê? por quê?”. “Dá culpa, muito sentimento de culpa”, diz a paulista Eliza Cristina Saravalli, mãe de Tiago, morto num acidente. Em seu caso, também a culpa, como se culpa houvesse, se desdobra em dois planos. “Para esquecer de um namoro terminado, eu o incentivei a dar uma volta no jipe que o matou.” Essa é a culpa concreta, se é que assim pode-se chamá-la. Mas há outra, novamente a da alma, a da ordem natural interrompida de nascimento, crescimento, envelhecimento e morte. Há o desespero que somente a desesperada sabe qual é. “Certa noite, voltando muito tarde de um baile, tirei os sapatos para entrar em casa para que o Tiago não visse a hora que eu estava retornando. Ele acordou e perguntou: mãe, essa cena não está invertida? Não sou eu que tenho de chegar tarde e você cedo?”, lembra Eliza. Agora, no angustiante luto cercado de símbolos, ela atravessa noites a fio se indagando o contrário: “Tiago, essa cena não está invertida? Não sou eu que tenho de estar morta e você vivo?” A despedaçada Eliza prossegue com ela trabalhando como cuidadora de idosos.

Criticada por alguns e apoiada por outros, ela voltou a dançar sempre que pode, atividade que funciona como terapia e entretenimento. Na subversão do tempo dos vivos e dos mortos, quando gente pequena morre antes de gente grande, ou na “traição do tempo”, como às vezes preferem definir essas mulheres enlutadas, já não vale o lugar-comum que repetimos e julgamos toda dor aplacar: “Dê tempo ao tempo que a dor passa.” Não. Para as órfãs de suas proles o tempo estanca e não há lenitivo; e entre aqueles que se especializam em cuidar delas é impossível quantificar um período de luto. “Perder um filho é o maior stress que o ser humano pode passar. Não dá para dizer quanto dura esse luto, ele pode ser eterno”, diz a psicóloga Éster Affini, especializada no atendimento desses casos. Luto eternizado e tempo estancado são vividos por Maria José da Cruz Ferreira. Ela está com 73 anos e sua filha única, Regina, morreu quando tinha 15. Nesse pesaroso intervalo de 37 anos, Maria José conserva o quarto da filha tal qual ele era. Na gaveta da cômoda, cadernos e provas do colégio; no armário, vestidos. “A caminha dela, a cadeira, o violão, os bichinhos de brinquedo, tudo igual”, diz a mãe. A certa altura da vida, se é que dá para falar em vida, Maria José e seu marido, José Roberto Ferreira, chegaram a cogitar um pacto de morte – os dois se suicidariam no mesmo instante. Eles não se mataram porque “nos voltamos para a fé em Deus e em Nossa Senhora, além do trabalho voluntário com jovens”, diz ela.

UM PÁSSARO CHAMADO TICO

A estrada da religiosidade, na verdade, é trilhada por muitas dessas mães. A mãe de Isabella já declarou que reza muito e volta-se para Deus. A mãe de João Hélio disse certa vez que segue a Igreja Católica e começou a assistir a palestras sobre espiritualidade dadas por psicólogos. A carioca Manoela Toledo, mãe de Luan que morreu de caxumba com 6 anos, primeiro blasfemou à maneira das desesperadas, depois, assegura ela, teve “uma vsão de Nossa Senhora, não com os olhos, mas com a mente”. E conta: “Antes de ver a Virgem, eu andava pela casa questionando Deus. A dor emocional era tanta que doía fisicamente. Eu me arrastava, curvada, ficava ajoelhada procurando cabelinhos de meu filho que poderiam estar no chão.” Cada órfã de filho empurra a vida, ou a reinventa em movimentos simples, com o vazio dentro de si. A paulista Luciana Leite, por exemplo, acaba de tatuar três corações no pulso e um pássaro no pé. Quando ela estava no hospital com seu pequeno Lucca, vitimado por doença degenerativa, “um pássaro visitava a gente todo dia e o Lucca chamava-o de Tico.” Luciana está trabalhando na área de comunicação de uma multinacional, voltou a namorar e cuida de seus dois outros filhos. A todas as mães órfãs entrevistadas ISTOÉ perguntou: – Que nome dar a essa dor? As mulheres-mães-órfãs choraram. As mulheres-mães-órfãs responderam: – Essa dor não tem nome.

Colaboraram: Cilene Pereira, Débora Rubin, Mônica Tarantino, Rachel Costa, Verônica Mambrini

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