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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

LIVRO FAZ VIAGEM AO FUNDO DA DOR:


A americana Joan Didion faz uma anatomia do sofrimento ao lembrar a morte do marido

Quintana, John Dunne e Joan Didion, em 1976: imagens que desbotam aos poucos

A escritora e jornalista americana Joan Didion estava aprontando o jantar quando seu marido, o também escritor John Gregory Dunne, tombou no chão do apartamento do casal em Nova York. Vítima de um ataque cardíaco, ele morreria na mesma noite – 30 de dezembro de 2003 –, ao dar entrada no hospital. Por essa época, a filha de Joan e Dunne, Quintana, estava internada em outro hospital, em coma após um choque séptico causado por uma pneumonia aguda. Cerca de dez meses depois da morte do marido, Joan Didion resolveu escrever sobre seu próprio drama familiar. Foi uma empreitada de risco: um tema tão pessoal e doloroso muitas vezes se torna um convite à autocomplacência e à franca pieguice. A autora, porém, encontrou o tom certo em O Ano do Pensamento Mágico (tradução de Paulo Andrade Lemos; Nova Fronteira; 222 páginas; 19,90 reais). E compôs uma admirável anatomia do luto.


O Ano do Pensamento Mágico guarda afinidades com Elegia para Iris, do crítico britânico John Bayley. São dois livros de devastadora sinceridade protagonizados por casais de escritores. Bayley, porém, não tratou da morte, mas sim da decadência física e mental da mulher, a escritora Iris Murdoch (ela morreria em 1999, pouco depois da publicação do livro). Com mais de 500.000 exemplares vendidos nos Estados Unidos, O Ano do Pensamento Mágico tornou-se o maior sucesso de público de Joan, que no entanto já era uma escritora consagrada pela crítica – o seu Play It as It Lays foi escolhido como um dos 100 melhores romances em língua inglesa dos últimos oitenta anos pela revista Time. "Eu tinha a sensação de que John estava comigo enquanto eu escrevia o livro", disse a autora a VEJA. "E não estou falando de nenhuma bobagem mística." É a esse tipo de sensação que o título faz referência: Joan, como muitos que enfrentam uma grande perda, viu-se assaltada por todo tipo de pensamento mágico. Mas forçou-se a uma disciplina racional, buscando informações sobre luto e morte em todo tipo de fonte – do clássico ensaio de Freud sobre luto e melancolia a um manual de etiqueta com recomendações para enlutados dos anos 20.


Surpreendentemente, ela afirma que a literatura sobre o luto é escassa. Um relato tão detalhado como o seu sobre a perda do marido – e sobre o calvário hospitalar da filha, que morreu pouco depois de Joan ter concluído a redação do livro – de fato não é um gênero comum. Mas a dor da morte é um dos temas mais constantes da literatura. Entre os poucos versos da poetisa Safo (século VI a.C.) que chegaram até os dias de hoje, há um fragmento curto mas pungente que fala de uma jovem que morre pouco antes de seu casamento, e das amigas que, conforme o costume grego, cortaram o cabelo em sinal de luto. No século XIII, Dante tratou, em prosa e verso, da morte de sua jovem amada Beatriz em Vida Nova. Ele encerrava essa obra breve prometendo que, em livros futuros, diria de Beatriz "o que nunca foi dito de mulher alguma". Cumpriu o prometido: na Divina Comédia, Beatriz aparece no Paraíso, cercada de luz. No extremo oposto dessa idealização arrebatada, teríamos a poesia de Augusto dos Anjos, brasileiro da virada do século XIX para o XX. Carregados de um bizarro léxico científico, seus poemas centram-se na realidade física da morte. Há um soneto sobre a decomposição do pai do poeta, e outro em que seu filho que nasceu morto aos sete meses de gestação é descrito como um "fruto rubro de carne agonizante". Não é leitura aconselhável para quem acabou de deixar um ente querido no cemitério.

Joan buscou alguns clássicos modernos em que se fala da dor. Ela não se lembrou das páginas de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, em que o protagonista sofre com a morte de uma avó querida, mas elogia a sensibilidade de um episódio de A Montanha Mágica, de Thomas Mann, em que o personagem perde a mulher. Sobretudo, ela aprecia Blues Fúnebres (poema que se popularizou ao ser recitado por um personagem do filme Quatro Casamentos e um Funeral), de W.H. Auden, com sua tristeza sem concessões: o sol pode se apagar e o mar secar, diz o poeta, porque nada mais poderá dar certo depois da morte do amado.



Menos pessimista, o herói de Sábado, do inglês Ian McEwan, oferece uma certa perspectiva de continuidade. O protagonista visita a mãe senil em um asilo e contempla a idéia de que em breve terá de fazer os arranjos para enterrá-la, porque é assim, afinal, que a vida segue. A passagem, por si mesma tocante, torna-se mais significativa quando se sabe que a mãe do próprio McEwan, morta alguns anos antes da publicação de Sábado, sofreu da mesma doença neurológica que afeta a personagem. É talvez uma superação do luto por meio da ficção. Será ilusório, porém, imaginar que a literatura traz qualquer consolo efetivo. A própria Joan não oferece nada do gênero em seu livro. Nas páginas finais, ela lamenta que a imagem de Dunne esteja se tornando aos poucos menos clara, mais embotada – ela lamenta, em suma, a superação da dor. Em meio às fórmulas banais de felicidade que se vendem nas prateleiras de auto-ajuda (inclusive nas duvidosas seções de "filosofia oriental"), O Ano do Pensamento Mágico é uma defesa da necessidade do sofrimento e do direito a ele.


A partir da revista Veja. Leia no original

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