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sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

UM DIA A MENOS....




Nem todas as pessoas têm 365 dias ao ano. Algumas têm 364. Quem perdeu alguém ao longo do caminho em uma morte prematura sacrifica uma data para sempre. O filho de uma amiga morreu em 13 de julho. Faz cinco anos e é como se fosse ontem. É um antianiversário. A ferida não consulta o calendário, a ferida é o calendário. O 13/7 não existe mais para ela. Ou existe em demasia. E não consegue, por mais que tente, esconder o luto, fingir compromissos, abafar a tristeza. Entre a manhã e a noite, o pavor de receber a notícia se repete. A impotência. A injustiça. Qualquer passante se parecerá com o médico que baixou definitivamente a cabeça. O azul do céu se revelará o avental do pronto-socorro. Morde-se os dentes para não morder a língua. Uma mãe grava o dia da morte do filho com a nitidez de uma unha encravada. Um filho encravado não se cura. Nem botando o próprio corpo fora.

Filho falecido é uma dor de inverno. Mexer nos casacos do armário e encontrar bilhetes e papéis no forro. As golas com o cheiro do pescoço. As golas como os pêlos loiros do pescoço, somente reconhecíveis pela respiração. As roupas não deixam nunca ninguém morrer integralmente. Um rastro, uma mecha de vento, uma loção permanecem. Cheira-se a lã e reinventa-se a memória.

Depois de cuidar de toda a vida do filho, uma mãe não se contenta: cuida toda sua vida da morte do filho. Adota a morte como uma criança no orfanato. Não que a morte seja seu filho, é o que mais se assemelha ao seu filho naquela hora. Depois de ver a vida do filho se ir, não pode deixar a morte do filho morrer.

Mesmo ele não estando ali, uma vez ao ano, ela dá de comer a sua ausência, conversa baixinho, na cartilagem da ausência, com os garfos dos cílios. Um filho não é assunto de Deus, é assunto privado da carne. A chaleira dos ouvidos passa da hora e não se encontra forma de findar o zumbido. Não ter contado com a chance de acenar e abençoar, de dizer boa sorte, volte logo, tchau e até breve consomem a boca.

A morte deveria ser educada e permitir despedidas. Entretanto, é grosseira, não admite ser menos importante do que o amor. Se o sofrimento traz pontadas no resto dos dias, neste dia é avassalador. Perder um filho é não perder ainda a esperança do filho. O gosto do filho. A alegria do filho. O suspiro do filho. Tudo é observado com zelo de uma reza. Reconhece-se na sola o quanto se caminhou. Os ouvidos são círios boiando na água. Flutuam em vozes conhecidas para manter a calma.

Minha amiga diz que não pode me abraçar nesse dia com sua fisionomia triste. Diante da perda, há o costume de se isolar, de não querer incomodar os outros com sua dor. A dor não incomoda. O que incomoda é quem não sente a dor. Peço a ela a chance de abraçá-la. Não para abafar o fogo, mas deixar que se alastre. Não para confortar, mas para não apagar essa dependência, essa fidelidade ao nascimento.

Fabricio Carpinejar

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